Introdução
A cardiomiopatia hipertrófica é definida como a hipertrofia de um ventrículo esquerdo não dilatado na ausência de condições normais de carga que justifiquem a magnitude de hipertrofia que o doente apresenta.2

Suspeita-se que a cardiomiopatia hipertrófica felina tenha uma base genética . De facto, foi descrita como doença familiar em raças como o gato americano de pelo curto, bosque de Noruega, sphynx, persa e Maine coon . 2Nesta última raça (e pode ser que em outras), a doença é herdada de modo autossómico dominante, tendo sido identificadas mutações no gene da proteína C fixadora de miosina. De todas as formas, a maioria dos gatos com cardiomiopatia hipertrófica é gatos sem pedigree.1
Em muitos gatos, a doença apresenta uma trajetória benigna e não se desenvolvem complicações comoinsuficiência cardíaca congestiva (ICC), tromboembolismo aórtico (TEA) ou morte súbita .1,3 No entanto, é importante diagnosticar formas ocultas de cardiomiopatia hipertrófica felina porque há determinados procedimentos como uma anestesia ou uma administração endovenosa de fluidos que podem favorecer a descompensação do doente . Além disso, a deteção precoce e o tratamento de gatos com risco de TEA pode afetar a progressão da doença.3
Diagnóstico
A ecocardiografia é considerada a técnica de referência para o diagnóstico da cardiomiopatia hipertrófica felina. O diagnóstico baseia-se na deteção de hipertrofia do ventrículo esquerdo na ausência de outras causas de hipertrofia (hipertensão arterial sistémica, hipertiroidismo, estenose aórtica).
A auscultação de sopro ou de sons de galope num gato deve instigar a suspeita de possível cardiopatia e promover a realização de um exame ecocardiográfico. Contudo, uma auscultação normal não exclui a existência de cardiomiopatia.2
Nem todos os gatos com cardiomiopatia hipertrófica apresentam hipertrofia ventricular generalizada, uma vez que é possível que a hipertrofia seja regional e apenas afete determinadas porções do septo ou da parede livre do ventrículo esquerdo . Por isso, recomenda-se prestar atenção à existência de áreas locais de hipertrofia no exame em modo bidimensional, assim como fazer medições em, pelo menos, 3 ciclos cardíacos.2 Em geral, uma espessura de septo ou de parede de < 5 mm na diástole é considerada normal e valores de 6 mm são diagnósticos de hipertrofia . Os valores entre 5-6 mm correspondem a uma zona de incerteza e devem ser interpretados tendo em conta o tamanho do gato, a história, a avaliação do átrio esquerdo e a função ventricular.1-3

A obstrução dinâmica do trato de saída do ventrículo esquerdo (ODTSVE) é consequente do movimento sistólico do folheto anterior da válvula mitral em direção ao septo. É uma alteração frequente (prevalência de 30%) que pode ser a causa do sopro nestes doentes e cujo significado clínico não se conhece bem, mas não parece afetar a mortalidade.3,4
A dilatação do átrio esquerdo (> 16 mm), a redução da fração de encurtamento do átrio (< 12%) ou do ventrículo (< 30%) esquerdos, a hipertrofia ventricular extrema (> 9 mm), e a presença de contraste ecográfico espontâneo no átrio esquerdo são indicadores do risco de desenvolver ICC ou TEA.1,3
A radiologia e o eletrocardiograma permitem avaliar se há sinais de congestão ou arritmias respetivamente, mas não são úteis para avaliar a existência de hipertrofia.1,3
Se a ecocardiografia não estiver disponível ou se procedimentos de risco vão ser levados a cabo em doentes com suspeita de cardiomiopatia hipertrófica felina, a medição da concentração de NT-proBNP e de troponina I pode ser útil.1-3 Foi proposto que gatos com NT-proBNP > 100 pmol/L apresentem provavelmente doença cardíaca, ao passo que valores de > 250 pmol/L associam-se a um risco maior de mortalidade.2,3 Sempre que for possível, estes resultados devem ser verificados ecocardiograficamente.
Por outro lado, resultados normais indicam que o desenvolvimento de cardiomiopatia em fase clínica é muito pouco provável a curto prazo, mas não excluem que isso venha a ocorrer no futuro. Por isso, se a suspeita persistir, recomenda-se fazer um seguimento ecocardiográfico.1 Valores elevados de troponina I são considerados indicadores de risco de mortalidade vascular.1 Para algumas raças, existem testes genéticos para detetar a mutação associada ao desenvolvimento de cardiomiopatia hipertrófica felina, mas nem todos os gatos apresentam a mutação e nem todos os gatos com a mutação apresentam a doença.1-3
Uma vez feito o diagnóstico, os gatos com cardiomiopatia hipertrófica felina são classificados de acordo com os seguintes estádios .1
- Estádio A: predisposição para cardiomiopatia, embora não haja evidência dela.
- Estádio B: gatos com cardiomiopatia sem sinais clínicos e baixo (B1) ou alto (B2) risco de ICC ou ATE.
- Estádio C: gatos que apresentam ou já apresentaram sinais clínicos de ICC ou TEA.
- Estádio D: gatos com ICC refratária ao tratamento.
Tratamento da cardiomiopatia hipertrófica felina
É aconselhável adaptar o tratamento dos gatos com cardiomiopatia hipertrófica felina de acordo com o seu estádio clínico.1
- Em gatos no estádio B1, não é recomendado tratamento, mas sim monitorização da sua evolução através de ecocardiografia, sobretudo da dilatação do átrio esquerdo que poderá indicar progressão para o estádio B2.
- Em gatos com ODTSVE , poderá ter-se em consideração a administração de atenolol , mas será necessário ter em conta que a ODTSVE não aumenta o risco de mortalidade e que o atenolol não foi demonstrado como tendo qualquer efeito na sobrevivência em 5 anos de gatos com cardiomiopatia hipertrófica subclínica.1
- Em gatos no estádio B2 que se consideram estar em risco de apresentar TEA, recomenda-se a administração de clopidogrel como monoterapia ou em conjunção com outros antitrombóticos nos casos de risco muito alto de TEA.
- Em doentes com arritmias ventriculares complexas , recomenda-se tratamento com atenolol ou sotalol , ao passo que o diltiazem ou os fármacos anteriormente referidos são indicados para gatos com fibrilação atrial.1
- Os doentes que se apresentam de modo agudo no estádio C devem receber tratamento com furosemida (bólus endovenosos ou infusão contínua), oxigénio, sedação para reduzir a ansiedade, e toracocentese em casos de efusão pleural. A administração de fluidos é contraindicada nestes casos.
- Em caso de débito cardíaco baixo e sem ODTSVE, pode considerar-se pimobendan ou mesmo dobutamina , mas não há muita evidência a esse respeito.
- Assim que o doente estiver estável, recomenda-se que regresse ao seu ambiente habitual logo que possível, com tratamento diurético na dose mais baixa que mantiver a frequência respiratória < 30 rpm, clopidogrel, e antiarrítmico se for necessário.1
- No estádio D , a furosemida pode ser substituída por torasemida e adicionar-se espironolactona . Além disso, se houver disfunção sistólica, pode considerar-se a administração de pimobendan e de taurina.
- No que respeita ao TEA , se houver indicadores de prognóstico favorável (só um membro afetado, normotermia, ausência de ICC), pode tentar-se tratamento, advertindo os tutores sobre a gravidade da situação e que a resposta ao tratamento, caso ocorra, pode demorar várias semanas ou mesmo meses. O tratamento baseia-se em analgesia (opioides agonistas mu) e anticoagulantes .1
Conclusões
Como acontece em outras doenças do gato, se diagnosticamos uma cardiomiopatia hipertrófica felina quando já há sinais clínicos, a nossa margem de manobra para o controlo da doença é sensivelmente reduzida. Por isso, é importante procurar estabelecer o diagnóstico na fase oculta da doença; embora seja também óbvio que não se pode, nem se deve recomendar uma ecocardiografia a todos os gatos que têm uma consulta. Neste sentido, é importante uma auscultação cuidadosa de todos os gatos que visitamos , independentemente do motivo da consulta. Se auscultarmos um sopro ou sons de galope , podemos então recomendar uma ecocardiografia . Por outra parte, em gatos “de risco” (raças predispostas) que vão ser anestesiados, pode ter interesse medir os níveis de NT-proBNP a fim de tentar detetar casos de cardiomiopatia oculta que possam descompensar-se durante o procedimento.









